Elaboração: Centro de
Apoio Operacional Criminal
Dirigente: Gustavo Senna
Miranda – Promotor de Justiça
Como
é de conhecimento de todos, uma das condutas que mais vem reclamando a atenção
dos órgãos de execução do Ministério Público diz respeito ao abate clandestino
de animais. Referida conduta tem reflexos em diversas áreas de atuação do
Ministério Público, destacando-se as seguintes: 1) saúde – na medida em que
coloca em risco a saúde da população, já que oferece mercadoria inapropriada
para o consumo, podendo provocar sérias doenças; 2) meio ambiente – na medida
em que pode acarretar poluição ambiental com o depósito irregular da mercadoria
ou com dispensa de dejetos em manancial etc.; 3) consumidor – eis que viola
direitos básicos da relação de consumo, atingindo direito difuso da
coletividade.
Não
por outro sentido que os(as) Promotores(as) de Justiça Dirigentes
respectivamente dos Centros de Apoio à Saúde, do Meio Ambiente e do Consumidor
estão envidando esforços para coibir tal prática, infelizmente com certa
aceitação, por falta de informação, da população, porém, de efeitos deletérios
para a coletividade, merecendo, portanto, atuação eficaz do Ministério Público,
preventiva e repressivamente.
Exatamente
no último sentido, isto é, na atuação repressiva do Ministério Público no
combate à conduta de abate clandestino de animais, que o Centro de Apoio
Operacional Criminal elaborou pequeno estudo (doutrinário e jurisprudencial),
unicamente com o objetivo de auxiliar os órgãos de execução do Ministério
Público na sua atuação prática, portanto, sem qualquer caráter vinculativo.
Além
de ser obrigação do Centro de Apoio fornecer suporte jurídico para os órgãos de
execução do Ministério Público, a pesquisa sobre o tema revela-se de grande
utilidade prática, notadamente colegas do interior, que se deparam
constantemente com a conduta ilícita acima citada, cuja tipificação criminal é
complexa, como se verá adiante.
I – Da tipificação da
conduta de abate clandestino
Como
destacado, o abate clandestino de animais para consumo de carnes é uma questão
grave que tem sido objeto da preocupação das diversas promotorias de justiça. O
risco de transmissão de zoonoses é bastante sério, o que tem obrigado os órgãos
de execução do Ministério Público a fiscalizarem as condições dos matadouros
municipais, não raramente requerendo judicialmente sua interdição, como também
a coibir o abate clandestino.
O
correto enquadramento da conduta não é matéria pacífica, havendo posições variadas
tanto na doutrina como na jurisprudência, conquanto o material disponível seja
escasso. Resumidamente, temos as seguintes possibilidades de enquadramento:
1 – Da tipificação da conduta como crime
de infração de medida sanitária preventiva
Inicialmente
vislumbra-se a possibilidade de tipificação da referida conduta no crime
intitulado “Infração de medida sanitária
preventiva”, previsto no art.268 do Código Penal, in verbis:
“Art.
268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução
ou propagação de doença contagiosa:
Pena
- detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo
único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde
pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.”
Assim,
nota-se pela redação acima que, em tese, é possível o enquadramento da conduta
do agente responsável pelo abate nas penas do crime acima referido. Nesse
sentido, aliás, encontramos o seguinte julgado: “Pratica
crime aquele que abate gado, destinado a consumo público, em seu quintal ou
qualquer local que não matadouros, em zona urbana, desrespeitando resoluções
municipais ou estaduais” (RT 269/518-519; Ap. N. 132.974 do TACrSP, in Justitia
26/297-8).
Ainda encontramos na jurisprudência o seguinte acórdão, que, mutatis mutandis, pode ser adequado ao
caso em comento: “CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA - Infração de medida sanitária preventiva -
Abate clandestino de gado vacum - Carne não destinada, porém, à população, mas
a familiares e convidados, para churrasco oferecido pelos acusados -
Inexistência de dolo - Absolvição decretada - Inteligência do art. 268 do CP de
1940. Se a carne obtida através de abate
clandestino de gado vacum era destinada não ao consumo público, mas a ser
servida, em churrasco, a familiares e convidados dos acusados, não se configura
a infração do art. 268 do CP de 1940, por falta de dolo específico”. Ap.
338.977 - Lorena - 5ª. C. - j. 9.5.84 - rel. Juiz Edmeu Carmesini - v. u. (RT
597/328).
Portanto,
da análise do julgado acima, a contrario
senso, mais uma vez se chega à conclusão de que será possível o
enquadramento no artigo citado se o agente praticar abate clandestino de gado,
com o objetivo de destinar a mercadoria para consumo da população,
representando, assim, um perigo para um número indeterminado de pessoas, sendo,
portanto, modalidade de crime de perigo abstrato.[1]
Sendo
enquadrado no citado artigo, é importante lembrar que, pela pena máxima
cominada em abstrato (1 ano), a infração é de menor potencial ofensivo, sendo,
portanto, da competência dos Juizados Especiais Criminais. Assim, na transação
penal (art. 76 da Lei nº 9.099/1995) é recomendável, como proposta de pena
alternativa, alguma pena adequada ao crime.
2 – Da tipificação da conduta em outros
tipos penais
Outras disposições legais
previstas no Código Penal Brasileiro podem ser eventualmente utilizadas para
tipificar tal fato delituoso, dependendo do caso concreto. Assim, por exemplo, lembramos
os artigos 259 (“Difundir doença ou praga que possa causar dano a floresta,
plantação ou animais de utilidade econômica”) e
278 (“Fabricar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou,
de qualquer forma, entregar a consumo coisa ou substância nociva à saúde, ainda
que não destinada à alimentação ou a fim medicinal”).
Porém, a tipificação nos delitos citados encontra maior dificuldade prática.
Também
não pode ser olvidada a Lei nº 9.605 (que dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente),
podendo, eventualmente, a conduta ser enquadrada em algum tipo específico da
lei ambiental, no que se refere a crime contra a fauna ou, até mesmo, crime de
poluição. Malgrado isso, não encontramos referências na jurisprudência, o que
não impede, observe, que se utilize da presente lei caso se consiga um perfeito
enquadramento de acordo com ao fato praticado.
3 – Da tipificação da conduta como crime
contra a relação de consumo
Finalmente,
destacamos ser forte o entendimento jurisprudencial de se enquadrar a conduta como
crime contra a relação de consumo, notadamente no que diz respeito às condutas
de depósito para a venda ou exposição para de carne clandestina.
Com
efeito, corrente o posicionamento que admite a possibilidade de seu enquadramento no art. 7º,
IX, da Lei nº 8.137/1990, pois é inegável que referidas mercadorias, por terem
o processo de abate e distribuição em desacordo com as normas regulamentares,
se apresentam impróprias para o consumo, violando, portanto, bem jurídico da
coletividade de consumidores, na medida em que tal conduta atinge diretamente
os interesses econômicos ou sociais do consumidor e, indiretamente, colocam em
risco a vida, a saúde, o patrimônio e o mercado.
Por
oportuno, para um melhor entendimento sobre o tema, pedimos vênia para transcrever
o artigo citado:
“Art. 7º. Constitui crime contra as relações de
consumo:
I – (...)
IX – vender, ter em depósito para vender ou expor à venda
ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições
impróprias ao consumo.
Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”
Comentado
o referido inciso, leciona Luiz Regis Prado[2]:
“A ação típica prevista no inciso IX consiste em vender (consubstanciada
na ação de comercializar, ou seja, transferir propriedade para outra pessoa,
mediante pagamento), ter em depósito para vender (que significa guardar,
conservar, deter, implicando posse ou detenção com o fim posterior de colocar à
venda a matéria-prima ou mercadoria imprópria ao consumo) ou expor à venda (que
expressa pôr à vista, mostrar, apresentar, oferecer, exibir para a venda) ou,
de qualquer forma, entregar (designa a translação de uma mercadoria ou
matéria-prima para cumprimento de uma obrigação contratual) matéria-prima ou
mercadoria, em condições impróprias ao consumo.”
Importante
destacar que o tipo em questão configura norma penal em branco, uma vez que
matéria-prima ou mercadoria consideradas impróprias para o consumo encontram-se
mencionadas na Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), em seu art.
16, § 6º:
“Art. 18. (...)
§ 6º - São impróprios ao uso e consumo:
I – Os produtos
cujos prazos de validade estejam vencidos;
II – Os produtos
deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos,
fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em
desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou
apresentação;
III – Os produtos que, por qualquer motivo, se revelem
inadequados ao fim a que se destinam”. (grifamos)
3.1. Da
jurisprudência sobre o tema
Como
destacado, é forte a posição jurisprudencial no sentido de enquadrar a conduta
no tipo acima referido. Assim, colacionamos alguns julgados sobre a matéria
relacionada ao abate clandestino, conforme segue adiante, em que se verifica
que até mesmo a conduta de abate clandestino de animais pode, em tese,
configurar o crime em comento, senão vejamos:
A) Depósito para a venda:
“Crime contra as relações de consumo. Agente
que mantém em depósito carne inadequada ao consumo. Configuração. Incorre nas
penas do art. 7º, IX, da Lei 8.137/90 o agente que, mantém em depósito de
açougue carne inapropriada para o consumo, sendo irrelevante o argumento de que
este separaria a carne avariada, não oferecendo-a aos consumidores, pois a
conduta típica é ter em depósito" (TACrimSP, Ap. 836.979, Rel. Walter
Guilherme).
"Incorre nas sanções do art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, o agente que efetua abate clandestino de gado e de suíno em local inadequado e sem as mínimas condições de higiene e segurança, transportando as carnes, em seguida, para seu estabelecimento comercial, em veículo próprio, sendo irrelevante o de não ter descarregado o produto por ter sido pilhado no desembarque, pois visível sua intenção de comercialização" (TACrimSP, Ap. 734.249, Rel. José Urban)
B) Exposição à venda:
“Exposição à venda de produto avariado.
Transferência da responsabilidade do agente ao fabricante ou concedente do
produto. Impossibilidade. No tocante ao crime previsto no art. 7º, IX, da Lei
8.137/90, a responsabilidade do agente não pode ser transferida ao fabricante
ou concedente do produto, pois o núcleo do tipo descreve a mera ação física de
expor à venda mercadorias em condições impróprias ao consumo, conduta esta que
não pode ser atribuída a terceiros" (TACrimSP, Ap. 904.319, Rel.
Aroldo Viotti).
“Crime
contra as relações de consumo. Responsável por setor de supermercado que, por
negligenciar na inspeção dos produtos a seu cargo, contribui à exposição à
venda de mercadorias em condições impróprias para a alimentação. Configuração.
Comete crime contra as relações de consumo - Lei 8.137/90, de 27.12.90, art.
7º, IX e seu parágrafo único - o responsável por setor de supermercado que, por
negligenciar na inspeção dos produtos a seu cargo, contribuiu na exposição à
venda de mercadoria em condições impróprias para a alimentação"
(TACrimSP, Ap. 842.465, Rel. Haroldo Luz)
“Crimes contra a ordem econômica e as
relações de consumo. Exposição à venda de mercadoria em condições impróprias
para o consumo. Caracterização. Ocorrência de nocividade a saúde.
Desnecessidade. O delito do art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, não reclama para a
integração de sua figura típica que a mercadoria vendida, exposta à venda ou
entregue, seja efetivamente nociva à saúde, bastando que se revista de
'condições impróprias ao consumo' não se confundindo com o antigo tipo
'substância avariada', revogado por esta mesma lei" (TACrimSP, Ap.
898.585, Voto vencido: Aroldo Viotti).
“Crimes contra a ordem econômica e as relações
de consumo. Agente que, negligentemente, expõe à venda produto impróprio para o
consumo. Configuração. Para a configuração da modalidade culposa do crime
previsto no art. 7º, IX, da Lei 8.137/90, basta a negligência do réu, no
sentido de expor à venda produto impróprio para o consumo, sendo desnecessária,
portanto, a demonstração de dolo na conduta do agente” (TACrimSP, Ap.
818.071, Rel. Samuel Júnior).
3.2. Da desnecessidade de prova pericial
Outrossim, importante observar que para a caracterização do crime
previsto no inc. IX do art. 7º, da Lei nº 8.317/1990, não há que se falar na
necessidade de laudo pericial para comprovação de que a mercadoria é imprópria
para consumo, pois estamos diante de um crime de perigo abstrato, sendo essa,
aliás, posição já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça:
“Crime contra as relações de consumo –
Abatedouro clandestino – Crime formal que se concretiza com a colocação em
risco da saúde de eventual consumidor da mercadoria – Desnecessidade de laudo
pericial da comprovação da impropriedade para consumo, por ser delito de perigo
abstrato – Inteligência do art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990. Ementa Oficial: O
tipo do inciso IX do art. 7º da Lei 8.137/1990 trata de crime formal, bastando,
para sua concretização, que se coloque em risco a saúde de eventual consumidor
da mercadoria. Cuidando-se de crime de perigo abstrato, desnecessária se faz a
constatação, via laudo pericial, da impropriedade do produto para consumo.”
(STJ – 5ª T. – Resp 235.271 – PR – rel. Min. Gilson Dipp – j. 02.05.2002 – RT
807/582).
No mesmo sentido há entendimento dos Tribunais de Justiças
Estaduais, senão vejamos:
“Crimes contra as relações de consumo –
Depósito de carne manuseada inadequadamente em local sem higiene –
Desnecessidade da realização de perícia – Existência de atestado de fiscais
sanitários relatando a improbidade para o consumo – Delito caracterizado –
Inteligência do art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990. Ementa Oficial: Caracteriza-se
o crime expresso no art. 7º, IX, da Lei 8.137/1990 com simples depósito de
carne manuseada, inadequadamente, em local sem higiene, sendo desnecessária a
realização de perícia, se os fiscais sanitários atestam a improbidade para o
consumo”. (TACrimSP – 12ª Cam. – Ap 1.339.281 – 5 – rel. Juiz Luiz Ganzerla
– j. 28.07.2003 – RT 818/597).
“Crime contra as relações de consumo –
Caracterização – Ausência de inspeção e selo de qualidade da carne em
estabelecimento comercial fiscalizado – Delito formal de perigo abstrato ou
presumido – Consumação que se dá com a constatação pela autoridade sanitária
competente da improbidade do uso – Inteligência do art. 7º, IX, da Lei
8.137/1990. Ementa Oficial: A conduta descrita no art. 7º, IX, da Lei
8.137/1990 é formal, de perigo abstrato ou presumido, bastando para sua
consumação apenas a constatação, pela autoridade competente, a improbidade do
uso por ausência de inspeção e selo de qualidade da mercadoria (carne) em
estabelecimento comercial fiscalizado.” (TAPR – 2ª Cam. – Ap. 0177571-5 –
rel. Des. Rafael A. Cassetari – j. 13.06;2002 – RT 811/709).
II - CONCLUSÃO
Assim, é inquestionável que o Ministério Público também pode se
valer do direito penal para coibir a nefasta prática, que tanto mau causa á
coletividade, que é o abate clandestino de animais destinado ao consumo.
Das tipificações possíveis a que encontra maior número de
incidência e, portanto, de aceitação pelos tribunais, é a do art. 7º, inc. IX,
da Lei nº 8.137/1990, destacando, inclusive, que referido delito possui pena
máxima superior a dois anos, estando fora da competência dos Juizados Especiais
Criminais, não sendo possível, também, pela pena mínima cominada (dois anos),
nem mesmo a suspensão condicional do processo.
Portanto, pela gravidade de sua pena, poderá, em tese, ser mais
eficaz para coibir a referida prática, merecendo reflexão por parte dos órgãos de
execução do Ministério Público.
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